Quando não há lei cabível, a consciência é a punição mais severa. (o autor)
Poucos devem se lembrar do caso que chocou a cidade de Campinas na década de 1980, mais especificamente no dia 22 de novembro de 1986, por volta das 11 horas da manhã. Naquela manhã, um adolescente de 16 anos, armado com um revólver calibre 38, participou de um assalto a uma residência e, durante a ação, efetuou três disparos considerados "acidentais" pela imprensa local. Dois desses tiros atingiram fatalmente Iraci de Souza, de 27 anos, e seu filho, Pedro de Souza Prandini, de apenas 3 anos.
A polícia foi acionada por um vizinho que notou a movimentação suspeita. Chegou a tempo de prender os três assaltantes, entre eles o menor Thiago da Silva, que declarou ter "perdido o controle" devido ao choro insistente da criança. Thiago foi encaminhado à Unidade de Internação Provisória (UIP), no Jardim Amazonas. Os outros dois envolvidos, Renato Pereira, de 23 anos, e Ivanildo Ventura, de 19, foram levados ao Centro de Detenção Provisória (CDP) de Hortolândia.
O pai da criança assassinada — funcionário público e proprietário de um mini-mercado local — tinha 39 anos. Estava casado com Iraci há seis anos, e Pedro era o primeiro e único filho do casal.
"Não há como descrever o que estou sentindo... Não existe punição possível para esse assassino que seja capaz de dar fim à minha dor. Sei que carregarei isso comigo até o fim da minha vida, e não há nada que possa ser feito", declarou o homem, que preferiu não se identificar, ao jornal local.
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Ele nunca mais retornou ao que, um dia, fora seu lar. Por alguns meses, hospedou-se na casa da irmã, até conseguir vender a residência e repassar o pequeno comércio. Nenhuma nova matéria, nota de rodapé ou mencão em jornal de bairro voltou a tratar do assunto.
Desce o pano. Acendem-se as luzes. O público permanece atônito e sai em silêncio fúnebre. Caso encerrado.
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Uma das prerrogativas de se trabalhar em áreas como Psicologia, Ciências Sociais ou Direito é o acesso a casos esquecidos pela opinião pública, mas que seguem vivos nos bastidores como objeto de estudo, reflexão e acompanhamento. Este foi um deles:
Thiago permaneceu em reclusão até completar dezoito anos. Sozinho e sem condições de sustentar-se fora dos muros da instituição, acabou sendo acolhido pelo educador Jurandir da Costa, à época com 41 anos, que assumiu a responsabilidade pelo jovem e encabeçou um projeto de ressocialização juvenil com apoio semanal de assistentes sociais e outros profissionais.
"No início, ele era resistente e arredio", relatou Jurandir. "Contou sobre os abusos que sofreu na instituição, a violência que enfrentou da mãe alcoólatra, que o espancava e o forçava a trazer dinheiro para casa. Disse que pouco conheceu o pai. Tinha cursado apenas o ensino fundamental e mal sabia ler ou escrever. Percebi que a educação básica seria minha primeira missão assim que ele passou a viver comigo."
Com o tempo, o quadro psicológico de Thiago começou a apresentar sinais claros de melhora. Jurandir passou a levá-lo para encontros com jovens vítimas de abuso e reuniões voltadas ao público toxicodependente. Já matriculado em um supletivo, Thiago começou a escrever ensaios orientados por Jurandir, textos que serviam como base para reflexões em escolas e instituições socioeducativas.
Segundo relato registrado por Jurandir em seu diário, em nenhum momento ele abordou diretamente com Thiago o crime cometido na adolescência: "Essa situação, entendo, deve ser tratada por profissionais especializados — psicólogos e afins. Não cabe a mim, como educador e mentor, julgar ou intervir diretamente em um comportamento passado que apenas ele tem o direito e a responsabilidade de elaborar. Minha missão é ensiná-lo, com delicadeza e firmeza, os valores necessários para que se torne o homem que, sei, pode ser."
Com o passar dos anos, especialmente aos 23, quando se preparava para firmar união com uma jovem com quem se relacionava há dois anos, Thiago começou a expressar a necessidade de, um dia, ser ouvido e perdoado pelo crime que cometera. Jurandir, porém, limitava-se a dizer: "Não é o perdão do outro que você precisa, mas o seu próprio. A consciência sobre o seu ato já é, por si só, um grande passo."
A relação entre os dois era harmoniosa. Aos 28 anos, formado em Sociologia e vivendo com a esposa, Thiago aguardava o nascimento de seu primeiro filho. Com uma vida simples, mas estável, dedicava-se ao atendimento de famílias em condição de vulnerabilidade social. Jurandir era, para ele, o pai que nunca tivera. O laço era tão sólido que Thiago incentivava o pequeno Lucas, seu filho, a chamar Jurandir de "avô".
De algum modo, o passado parecia ter ficado para trás. Se não pelos fatos que o marcaram, ao menos pelas conseqüências que, paradoxalmente, o conduziram ao encontro de seu "pai adotivo" e à escolha de uma profissão que abraçava com vocação, paixão e propósito.
Foi em maio de 2015 que Jurandir, então com 68 anos, recebeu o diagnóstico de um câncer no estômago em estágio avançado. Thiago, agora pai de dois filhos, passou a visitá-lo diariamente. Embora a expectativa de sobrevida fosse baixa, ele se apegou à esperança de um milagre. Amava profundamente aquele a quem chamava de pai e jurou não abandoná-lo.
Este não é um romance. E, assim como a vida é capaz de brindar-nos com sua luz, também nos cobra seus mortos. Aos que ficam, restam a dor, a desesperança e uma saudade quase insuportável.
Jurandir atravessou a fronteira entre os mundos poucos meses após o diagnóstico. Foi a primeira grande perda de Thiago: a dor de ver partir, em sofrimento e agonia, aquele que fora seu mentor, educador, figura paterna e avô por merecimento, mesmo sem jamais ter construído sua própria família.
E como a vida é mestra em pregar peças, resta-me apenas encerrar este trecho com aquilo que dela nos sobra: memória, dor e palavras. Deixo com você, leitor, as duas cartas trocadas. A primeira, escrita por Thiago e entregue em mãos a Jurandir, usada como vestimenta simbólica para seu último repouso. A segunda, deixada por Jurandir ao médico que assinaria seu óbito, com o pedido expresso de que fosse entregue ao jovem no momento da despedida:
Carta de Thiago a Jurandir
"Pai,
Todas as vezes em que me despeço, demoro a fechar a porta. Sempre deixo uma fresta, como quem ainda espera mais um gesto, mais uma palavra sua — um último olhar que talvez me baste, caso o amanhã não venha.
Digo que volto amanhã, mas nunca sei se o amanhã chegará para nós dois. Então caminho até minha casa com o coração preso nas últimas lembranças, e, confesso, tenho chorado no percurso. Não por fraqueza, mas porque estou aprendendo a perder — e ninguém me ensinou isso com tanta ternura como você vem fazendo.
Ontem, enquanto eu tentava engolir meu próprio medo, você me falava do futuro. Do meu futuro. Me lembrava da vida que construí, da mulher que amo, dos filhos que tenho, e do quanto tudo isso só tem sentido quando regado com amor verdadeiro. Eu escutei, pai. Escutei com o coração inteiro.
Ao sair, chorei de novo. Não por mim, mas por imaginar que, em breve, talvez você se despeça não só de mim, mas de tudo o que foi, do mundo como o conheceu, e da história que, por sorte, cruzou a minha.
Você ainda me surpreende quando diz que nunca houve esperanças para você. Eu me recuso a aceitar isso. Porque foi justamente você quem me ensinou o que é esperança — não com palavras, mas com presença. E se hoje sou um homem, um pai, um educador, é porque você acreditou, silenciosamente, quando ninguém mais o fez.
Não lembro do seu sorriso, e isso me dói. Mas lembro do que você me deu sem precisar sorrir: direção, afeto, dignidade. Você não apenas me ensinou a ser amado — você me ensinou a amar. Com calma. Com coragem.
Obrigado, pai. Levo você comigo — no que faço, no que digo, no que ensino aos meus filhos. É assim que você continuará, mesmo quando não estiver mais aqui.
Amanhã estarei de volta, no mesmo horário de sempre. E, até o último instante, manterei aquela fresta aberta. Porque é assim que aprendi contigo: a amar sem fechar a porta.
Com tudo o que sou,
Thiago"
Carta de Jurandir a Thiago
Thiago,
Se estás lendo estas palavras, é porque minha travessia se cumpriu. Já não estou mais aí, neste lado da margem, para te abraçar ou te olhar com o silêncio costumeiro que tantas vezes foi o que consegui oferecer.
Queria que esta carta fosse apenas uma despedida serena, mas preciso confessar que ela é, também, um pedido de perdão.
Não conversamos sobre tudo o que importava. Eu sabia — sabia que você esperava de mim algo mais do que presença e conselhos formais. Você queria escuta, talvez absolvição. Mas, por covardia ou orgulho, me calei. Me escudei no papel de mentor, como se isso me isentasse de ser inteiro. Falhei.
Não sei se você percebeu — mas, quando aceitei te acolher, havia em mim um impulso que ultrapassava a razão. Talvez tenha parecido nobre, mas a verdade é que havia algo de profundamente egoísta também. Eu não queria apenas te salvar... Eu queria, em parte, me redimir.
Nunca te contei — não consegui — que eu mesmo fui vítima daquilo que você causou. Que Iraci e Pedro eram minha família. Minha esposa. Meu filho.
Você não sabia... E eu nunca disse.
Naquela manhã maldita, encontrei os dois — o corpo dela ainda quente, o dele... pequeno demais para tanta brutalidade. Desde então, passei a viver com a sensação de que nada mais faria sentido. E, no entanto, você surgiu. Um menino sem rosto, sem história, apenas um nome num processo. E algo em mim decidiu: se eu não conseguir perdoar aquele garoto, talvez consiga ensinar-lhe a ser outro homem.
Não consegui te perdoar, Thiago. Pelo menos, não da forma como as histórias gostam de contar. O perdão que te ofereci — se é que ofereci — foi disfarçado de projeto, de vocação, de educação. Mas, em verdade, eu te ofereci a minha dor, dividida em porções diárias de silêncio, presença e disciplina.
E mesmo assim… eu te amei.
Amei o homem que vi nascer de você, mesmo sem conseguir apagar o menino que te antecedeu. E, se não fui o pai ideal, pelo menos tentei ser presença. Fui duro. Fui omisso em tantas conversas que você merecia ouvir. Mas eu estava cansado, Thiago. Cansado de carregar a lembrança do que perdi e, principalmente, do que me tornei depois daquilo.
Por isso, te peço: me perdoe. Me perdoe por nunca ter dito o que você precisava escutar. Me perdoe por ter transformado a nossa convivência numa espécie de penitência silenciosa para mim. E me perdoe, sobretudo, por ter te imposto o fardo do meu remorso, mesmo que você jamais tenha pedido por ele.
Ao entrar na sua casa hoje, abrace seus filhos e sua esposa. Sinta o que eu perdi. Toque o que você construiu. E saiba: mesmo sem ter conseguido perdoar aquele menino, eu amei — com tudo o que me restava — o homem que você se tornou.
Com pesar e amor,
Jurandir"