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Prólogo

Somos apenas o que somos. Mas, por vezes, o que somos não basta — não a alguem que valha, mas a nós mesmos.

Queremos ser mais. Precisamos ser mais. Não porque o mundo nos exige — mas porque algo em nós sussurra, incansavelmente, pela parte de nós que ainda não nasceu. É como alguém que, preso a uma cadeira de rodas, tenta mover as pernas sem sucesso — mas insiste, não por esperança vã, e sim porque o que vê ao redor o chama com tal beleza, que chega a doer.

A materialidade do que se pode ver, tocar, viver… seduz, angústia — e impele. Não é o mundo lá fora que nos empurra, é o vazio cá dentro que quer aprender a existir.

E se algo nos falta do lado de fora, certamente é porque falta algo do lado de dentro. Tornar-se melhor, então, é uma travessia: um ato de manifestação de si, em partes ainda não manifestadas, num todo, um risco calculado entre continuar sendo e se permitir ser outro — embora nunca ao ponto de não se reconhecer.

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Primeiro ato

Um homem caminha, solitário, à margem de uma estrada esquecida. (Este homem sou eu — mas poderia ser você, se conseguir se imaginar ali.) O asfalto sob seus pés não é apenas chão: é silêncio. Silêncio antigo, desses que provocam e perturbam... desses que imploram por algo, qualquer coisa que valha.

Ele se sente vazio — como um eco que já esqueceu de onde veio, como se o som de si mesmo tivesse se diluído no tempo, restando apenas o espaço entre as notas da memória — um território suspenso, por onde ele ainda vagueia, sóbrio e ausente de si.

Suas memórias... deterioradas. Como células que apodrecem com o tempo, sem aviso prévio. Ele tenta resgatá-las. Mas o tempo, ele percebe, tem garras implacáveis. Talvez, se tivesse contado a alguém... Talvez, se tivesse escrito em um guardanapo ou papel de pão... Mas não o fez. E agora, tudo o que resta é a sensação de ter sido algo — e não saber o quê.

A noite o envolve. O vento úmido o acolhe como um abraço que não se pede, que não exige explicações. A lua abre caminho à sua frente — e, por um instante, a estrada parece um fio de luz entre dois abismos.

Seus olhos — outrora vivos — agora parecem mares profundos, onde naufragam lembranças, desejos e perguntas sem resposta.

As cordas do violão que carrega jazem oxidadas, e a música que um dia nasceu de suas mãos agora se recolhe em silêncio sepulcral.

“— Onde estará ele?”, perguntei, certa vez, numa noite de tempestade.
“— Onde estará ele...?”, me perguntaram, anos depois, sem resposta.
“— Onde está ele?”, ela me perguntou… tarde demais.

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Segundo ato

As noites, que um dia foram vastas e promissoras, se tornaram mais longas desde que ele partiu. Sinto falta do meu amigo. Do seu entusiasmo descompassado, das canções cheias de paixão e doçura, do seu jeito de fazer da vida um romance melancólico, repleto de encontros e despedidas, e interminável.

Hoje, à beira da praia — onde costumávamos esperar o sol se pôr — encosto-me num velho barco encalhado, testemunha silenciosa das conversas que o tempo não apagou. A vida, que antes parecia uma fábula medieval, hoje repousa como lembrança desbotada.

As donzelas sumiram das torres.
Os cavaleiros já não empunham espadas.
Mas ele… rememoro:
ele sabia transformar um simples olhar em história,
um silêncio em poesia,
um instante em eternidade.

Olhando para uma árvore próxima, observo o vento rodopiar em suas copas vazias... recordo um momento... Era primavera. Tempo em que o amor floresce nos corações mais distraídos. Ele a olhou, tão próxima, encostada numa árvore parecida, e disse:

“— Quero tocar sua alma antes que a realidade interfira. Viva um instante de sonho, apenas o suficiente. Sinta o que meu corpo não pode te dar, e me deixe alcançar um lugar onde nenhum beijo jamais chegou. Que eu possa crer que a vida te roubou dos meus sonhos, só para me devolver — mesmo por um momento, antes que eu durma novamente — a você.”

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Terceiro ato

O tempo passou, hoje, sentado em minha poltrona, por um segundo, olho para a gata que dorme em meu colo. Penso que, um dia, ela também irá partir. Talvez dormindo assim — como agora. E, então, esse breve momento também será uma memória...

O relógio atrás de mim gira seus ponteiros com pressa. E percebo — não choro pelas perdas em si, mas pelo tempo que não retorna, pela impossibilidade de reviver o que somente hoje compreendo.

Há, em mim, um atraso trágico entre a consciência e o presente — um atraso que só me revela a grandeza das coisas quando já se esvaíram, quando o instante já não é mais, e tudo o que resta é a beleza póstuma daquilo que não soube ser vivido em plenitude.

Chorarei, sim, por ela (seja ela quem for). Chorarei pelo vinho entornado, pelo trago não sorvido, pelas palavras não ditas. Guardarei suas coisas por tempo demais… até finalmente, sem remorço, deixá-las ir.

“— Não deixe os dias passarem”, diz a canção…

Enfim...

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Epílogo

O tempo não perdoa quem o ignora. E ignorá-lo tem seu preço justo: o próprio tempo perdido.

Com o violão nas mãos, um caneco de vinho ao lado e a companhia do silêncio — que aguarda, cúmplice, ser (co)rompido — penso que talvez, um dia, eu ainda toque essa música "Homem nada", de um velho amigo, desconhecido, Vedder. Mesmo que quase ninguém a conheça.

Afinal, nunca toquei para agradar. Assim como escrevo — não por estética, mas por necessidade.

... Escrevo antes que o tempo leve tudo.

Este texto, com sua desordem, por fim, é apenas um espelho: fragmentado, como eu; irregular, como a memória; melancólico, como a dor de lembrar de um lugar em que, no fundo, jamais se esteve por inteiro — pois quando enfim se percebeu a beleza do instante, já era tarde demais para habitá-lo.

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